A Autópsia de Jane Doe e os mistérios da meia-noite, que voam longe...
Sinopse: Tommy Tilden e Austin Tilden, seu filho, são os responsáveis por comandar o necrotério de uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos. Os trabalhos que recebem costumam ser muito tranquilos por causa da natureza pacata da cidade, mas, certo dia, o xerife local traz um caso complicado: uma mulher desconhecida foi encontrada morta nos arredores da cidade – “Jane Doe”, do jargão americano. Conforme pai e filho tentam descobrir a identidade da mulher morta, coisas estranhas e perigosas começam a ocorrer.
Sob a direção de André Øvredal, mesmo diretor de O Caçador de Troll (2010)¹, estamos cá nós sendo apresentados a seu mais recente trabalho: The Autopsy of Jane Doe – que corre o risco de ficar com o título arroz-branco “A Autópsia”², aqui no Brasil – um boníssimo longa de Terror da remessa de 2016 – figurando, facinho, ao lado de A Bruxa, The Wailing, Hush: A Morte Ouve, O Homem das Trevas, Invasão Zumbi e demais títulos do gênero de qualidade acima da média. Pra quem acompanha o andar da carruagem mambembe do Horror contemporâneo, a nova incursão de Øvredal no Terror é uma grande e bastante notável surpresa. Se já não despertou, ainda vai despertar a curiosidade de muito fã de carteirinha do bom e velho Horror por aí, não por ser um trabalho atulhado de polêmicas, mas por possuir uma qualidade que anda pra lá de rarefeita de umas décadas pra cá. Só espera, leitor: alguém vai mencionar esse filme numa daquelas suas boas trocas de indicações.
Numa cidadezinha pacata do interior americano, um crime chocante acontece. Entretanto, existe lá uma peça que não se encaixa: um corpo de uma bela jovem está perdido no meio do negócio. Assim, DO NADA, tá lá um corpo de alguém que ninguém sabe a procedência. — Nunca vi mais gorda, dizem os policiais na cena do crime. Daí, o corpo é enviado para os dois legistas da cidade, pai e filho, e o tempo fecha... Literalmente. E, vai por mim: é só isso que você precisa saber.
A Autópsia de Jane Doe é, antes de eficiente, uma produção esperta, e tudo isso porque o filme soube vender bem o seu peixe. Primeiramente, tem seu início com uma introdução emergente e gráfica, que busca reter de imediato a atenção do espectador – obtendo êxito nisso – e, em segundo lugar, por seu mistério por camadas, desenhado com esmero e muito bem desenvolvido, elemento esse que foi um ótimo artificio narrativo e, no fim das contas, o grande lance da produção. Isso, sem contar com o orçamento baixo e com o molde mono-ambientado da produção, que se passa quase inteiramente dentro do necrotério. E somente daí a eficiência do filme: conseguir, cerceado de limitações e num curto espaço de tempo, reter a atenção de quem o assiste, sem deixa-la escapulir das mãos por nem um minutinho sequer. É realmente muito bacana o modo com que o quebra-cabeças vai ganhando forma no decorrer da trama. A cada incursão da dupla de legistas pelo corpo de Jane Doe, uma nova peça do jogo era encontrada, peça essa que tanto dava pistas sobre o caso quanto aumentava as dúvidas sobre a procedência da desconhecida.
Mais atenuadamente no cinema de Terror, a facilidade com que uma produção nos leva a imergir em sua trama passou a significar para mim a prova máxima de que o suspense de um filme foi bem construído. Nem sempre tive esse entendimento, mas passei a ter nele um bom parâmetro de qualidade; e é exatamente isso que acontece aqui: você fica ali, perdido junto com a dupla de protagonistas, tentando descobrir o que raios é que está acontecendo, afinal.
ORA ORA... PARECE QUE TEMOS UM XEROQUE ROLMES AQUI.
Mesmo atolado até o pescoço em teorias, das mais verossímeis às mais abilobadas, você não consegue decifrar o bendito enigma até que o filme, por si só, chegue na resposta. Temos aqui um longa de Terror quase completo: apesar de curto, aposta suas fichas no poder de atração de sua trama, cuja temática não é determinada a priori,³ e na perícia de sua condução. O resultado disso é um filme que, depois de tudo, ainda consegue, sim (embora não soe em primeira análise), ter a sua dose particular de originalidade.
É muito interessante notar que o Øvredal não se intimida com o fato de o filme ter seus limites orçamentários, e faz um trabalho esbanjando competência, demonstrando ter tato pro negócio – sobretudo, para produções de tratamento mais convencionais, fora do formato found footage. Øvredal – que foi acometido por um repentino desejo de realizar um bom trabalho de Terror após assistir a uma exibição de Invocação do Mal (2013) – tem um domínio muito prudente da imagem, o que pode ser observado nas suas boas noções de enquadramento e foto, por exemplo. O rigor da direção chega a ser quase metódico, muito embora não consiga escapar de problemas textuais – os quais logo logo abordarei. Quando pincelei ali por cima que o filme tem lá o seu quê de originalidade, quis fazer alusão à forma peculiar com que o filme transita entre tons genéricos: se examinado com calma, notas-se que A Autópsia de Jane Doe se inicia como um simples Thriller de ocasião e termina concluindo-se como um Terror sobrenatural – que, aliás, pode ocupar lugar de destaque entre as tramas de Ficção Especulativa lançadas em 2016.
Mas nem tudo foram flores no conjunto dessa autópsia. Já ali próximo às vias de conclusão do filme, a organicidade com que as coisas vinham acontecendo no decorrer da trama parecem ter se desestabilizado subitamente – nesse caso, voltadas à algumas tomadas de decisão e à certas conclusões obtidas de maneira instantânea demais para as circunstâncias –, provavelmente em função da necessidade de entrega de um arremate conclusivo. Algumas coisas, isoladas, me foram um tanto difíceis de serem digeridas; até compreendo a razão, mas não deu pra deixar passar.
A Autópsia de Jane Doe é, por fim, um entretenimento coeso; intrigante sem ser chato e tenso sem recorrer tanto a apelos brotoejantes. E, bom... Nunca antes uma simples e completamente estática pessoa morta, deitada e nua, por pouco menos de 90 minutos, foi tão interessante. Se vale a pena ver? Vale. Mas vale principalmente se você é um desses que está a um pé da desistência do Terror cinematográfico desse nosso tão malfadado século 21, que, acredite se quiser, continua respirando, e aí está A Autopsia, mais um bom exemplo disso. Que bom que, entre inspirações e expirações, a gente acaba esbarrando com filmes como esse por aí.
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[1]: Longa que, a propósito, é um dos melhores títulos já lançados dentro da seara Found Footage.
[2]: Nem vem, po, esse título ficou peba sim. Podia ser um “A Autopsia de uma Desconhecida”, ou qualquer coisa nessa direção. Sendo bem franco, acho que até um “A Estranha Morta” seria melhor que o título morto que deram pra esse filme.
[3]: “Não pronta” no sentido de que, diferentemente de tramas convencionais, não nos é dado um mote temático central, pronto e definido, como "filme de vampiro", "lobisomem", "bruxa", "assassino serial", etc. O plot desse filme não enseja nenhuma ideia concluída de tema.
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Esse texto foi publicado originalmente no blog CINECOMTEXTO.
Por Ericson Miguel.
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