Incompetência fora de órbita - Parte I
Esta é a primeira parte de uma série de textos sobre as desventuras aeroespaciais brasileiras. Foi originalmente publicado em https://web.archive.org/web/20160706142025/http://douglasdnn.com:80/
Desde que o primeiro humano olhou para as estrelas, nossa espécie sabia que seu destino manifesto era a exploração do espaço. Essa força irresistível que nos impulsiona para fora do globo é uma das maiores angústias existenciais da humanidade, e, posta em perspectiva em um futuro não tão distante, talvez possa ser vista como um instinto básico desses seres que, desprovidos de asas, voam em direção ao vácuo por pura teimosia.
Mas nem toda teimosia nos propulsiona em direção aos astros. Em uma certa região do planeta, notadamente a que habitamos, a teimosia parece ser de muito menos proveito ao sonho de Ícaro, e muito mais uma propensão ao andar em círculos, bater cabeça e destruir recursos, riqueza e produção, como se, ao invés de olharmos nosso futuro em meio aos astros, prestássemos eterna homenagem à aparentemente saudosa poça de lodo ancestral da qual saíram nossos antepassados mais remotos.
É a impressão que fica, quando analisamos a tragédia humana, tecnológica, administrativa, diplomática e financeira que marca a saga brasileira de colocar satélites em órbita, a qual comentarei brevemente, em homenagem ao nosso retrocesso na área, de trás para frente – neste artigo, analisando o mais novo capítulo de nossa jornada estelar de incompetência, o absurdo do projeto Cyclone-4.
A história dessa tragédia começa em 21 de outubro de 2003, quando assinamos com a Ucrânia o Tratado entre a República Federativa do Brasil e a Ucrânia sobre Cooperação de Longo Prazo na Utilização do Veículo de Lançamentos Cyclone-4 no Centro de Lançamento de Alcântara, assinado em Brasília por Roberto Amaral, então Ministro de Estado da Ciência e da Tecnologia do ainda infante governo de Lula, e pelo Ministro de Relações Exteriores da Ucrânia, Kostyantyn Gryshchenko.
Era a tábua de salvação do moribundo programa espacial brasileiro, que já havia passado por poucas e boas (e eu juro que contarei esta história de sangue, incompetência e falhas em momento apropriado).
De toda forma, o negócio com os ucranianos era um negócio da China: seria criada a Alcântara Cyclone Space-ACS, com capital dos dois países. Ao Brasil, competia fornecer o local de lançamento (que, bem ou mal, já tínhamos, em Alcântara – palco de várias desventuras aeroespaciais anteriores) e a infraestrutura de solo necessária. À Ucrânia, competia… fazer todo o resto, ou seja, desenvolver o veículo praticamente sozinha.
Era um preço pequeno para, finalmente, adquirirmos capacidade de colocar nossos próprios satélites em órbita, aumentar nossa rede de monitoramento climática, ambiental, militar e de telecomunicações, tirar da boca o gosto ruim do fiasco astronômico do VLS, ainda recente, e de modo geral sair da lanterninha da corrida espacial mundial. Também fazia parte dos planos do país parar de pagar para lançar satélites no país dos outros e, ainda, faturar algum dinheiro com lançamento de satélites para os outros.
O mercado de lançamento de satélites é um mercado de oferta escassa, pois, como todos sabemos, em razão do movimento de rotação da Terra, é muito mais fácil vencer a atração terrestre a partir de lançamentos próximos da linha do Equador, onde a velocidade de rotação do planeta é a máxima, dando uma valiosa ajuda extra para a entrada em órbita de qualquer veículo que deixe o solo. Além disso, a Terra não é perfeitamente esférica, sendo mais achatada próxima aos polos, o que torna o caminho às regiões celestes mais curto a partir do Equador. E, de todos os países do mundo, o Brasil possui a mais larga fatia dessa linha privilegiada, tendo como seus rivais na exploração dessa vantagem alguns países africanos, como Somália, Uganda, Gabão e Quênia, a Indonésia, na Ásia, as Maldivas, e na América do Sul Colômbia e Equador, que, embora carregando o nome do maior explorador da Terra e da linha em si, não parecem ter muita vocação para a aventura espacial. Os Estados Unidos, por exemplo, fazem seus lançamentos na Flórida, no Cabo Canaveral, acima do Trópico de Câncer, lançando seus veículos aos céus com 200 km/h a menos do que faríamos do Equador. Isso, traduzido para a força primordial do Universo – os dólares – representa uma desvantagem de dezenas de milhões em combustível para os americanos em relação ao preço que nós, brasileiros, poderíamos cobrar. Mas, o que nos sobra em vantagens geográficas, compensamos com uma vocação ao engenho muito mais tímida do que os americanos, que parecem realizar os maiores feitos mecânicos com uma objetividade que a nós, burocratas inveterados, parece mágica. Ao contrário dos nossos competidores ianques, que pensam em turbinas e combustível aparentemente desde o berço, a nós parece mais natural atingir os céus a partir de pilhas de papelada inútil e custosa.
De toda forma, deveríamos ter agradecido aos mesmos céus que desejávamos atingir por termos encontrado os ucranianos, co-herdeiros de todo o know-how soviético acerca de colocar coisas em órbita (ou no quintal dos outros). Afinal, trabalharíamos diretamente com a lendária Yuzhnoye Design Bureau, empresa tradicional de projetos de satélites e foguetes da Ucrânia, que, desde a época da Guerra Fria, infernizou os americanos com seus projetos de Mísseis Balísticos Intercontinentais para a União Soviética.
Em 2005, foi publicado o Decreto 5.436, promulgando o tratado. Estava oficialmente reiniciada nossa corrida aos céus, com apenas algumas décadas de atraso, sendo criada a Alcântara Cyclone Space-ACS, nova menina dos olhos da Agência Espacial Brasileira.
E que menina! Para a Direção-Geral brasileira, foi nomeado o próprio Roberto Amaral, em 2007, o próprio ex-Ministro de Estado da Ciência e da Tecnologia que havia assinado o tratado que salvaria nossa estrada aos céus – e nossa reputação, pois a comunidade aeroespacial internacional já duvidava da nossa capacidade de mesmo empinar pipas, após os repetidos papelões do VLS.
A aposta era tanta que Lula, sem submeter o assunto a votação nem nada (e nem se dando o trabalho de sequer numerar o Decreto, que ainda hoje figura na misteriosa base de decretos não-numerados utilizada para desovar meros atos de expediente sem importância geral, que de uns tempos para cá passou a ser usada também para aventuras orçamentárias milionárias ficarem abaixo do radar do Princípio da Publicidade), editou o Decreto n°…. número…. bem, não tem número, mas saiu no dia 3 de março de 2009, aumentando o capital da ACS em 100 milhões de reais, no canetaço:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Dnn/Dnn11975.htm
O projeto ia de vento em popa… na Ucrânia. O pessoal dos Balcãs estava avançando a largos passos e o veículo estava sendo terminado dentro dos parâmetros de performance e funcionalidades previstas, conforme o combinado, chamuscando repetidamente a área de testes dos cosmódromos de Baikonur e Plesetsk.
Por aqui, ninguém parecia muito bem saber em que ponto do projeto estávamos.
Alguns mais otimistas já falavam de acordos da ACS com a SpaceMETA para audaciosas missões tripuladas à Lua, em que levaríamos nossa ginga, cultura, futebol e samba para o astro das noites, que certamente muito sucesso iriam fazer entre os selenitas. A Google, mantenedora do Lunar XPrize, acreditou – e quem não acreditaria?
Em outros fronts – como, por exemplo, o da prática – as coisas eram mais nebulosas. As únicas deliberações que pareciam decolar tratavam de assuntos como remuneração dos administradores da ACS. Um espectro começava a rondar o projeto: a ameaça de inadimplência da Agência Espacial Brasileira. Na Assembleia Geral, o Dr. Oleh Uruskyi, Presidente da Agência Espacial Estatal da Ucrânia e representante oficial da Parte Ucraniana, refletindo o temor dos seus compatriotas, pediu aos colegas brasileiros que tivessem a gentileza de perguntar ao Governo brasileiro se ele estaria porventura interessado em CUMPRIR O MÌNIMO COMBINADO, e levar as obras prometidas à frente.
Foi o início de uma longa via-crucis do Governo da Ucrânia, na pessoa do Dr. Oleh Uruskyi, para meramente extrair do Governo brasileiro alguma resposta sobre se continuariam ou não no projeto, visto que as obras estavam congeladas e a AEB estava devendo cada vez mais à ACS. O dinheiro, que antes fluía, misteriosamente estancou.
Longe dali, as explicações começavam a aparecer. As empresas envolvidas na construção da infraestrutura de Alcântara, que pareciam estranhamente vorazes em recursos públicos, figuravam como beneficiárias do esquema do Petrolão, e a situação parecia cada vez mais de competência da Polícia Federal do que da Agência Espacial Brasileira. A Lava-Jato colocou sob o holofote uma série de contratos de construção que mais pareciam destinados a fazer decolar propinas do que satélites. O esquema criminoso de corrupção deixou nossos parceiros ucranianos perplexos. E olha que estamos falando de ucranianos.
Por outro lado, quem ficava com a boca nas orelhas eram nossos companheiros de BRIC, a Rússia (que estava em briga com a Ucrânia, por causa da Criméia), e a China, para quem pagávamos para colocar nossos satélites em órbita. Aqui, o dinheiro para avançar o Cyclone-4 e nos dar autonomia espacial secou, mas, no mesmo período, despejamos 80 milhões de dólares no satélite Cbers-4, lançado pelo foguete Longa Marcha 4B de Taiyuan, nordeste da China, em 2014, sem nem pestanejar, porque companheiro de BRIC é companheiro de BRIC.
Longa Marcha. Bem, pelo menos eles chegam lá.
Os ucranianos, entretanto, mesmo se sentindo traídos, não pararam de insistir – também pudera, gastaram mais de bilhão de dólares sem contrapartida do Brasil, e suas consultas eram visualizadas, mas rudemente não-respondidas. O veículo estava pronto, testado, funcionando, e nada do Brasil se aproximar de meramente arrumar um simples local para lançá-lo no quintal do Sr. Sarney.
Eis que, em 2015, saiu do Itamaraty a seguinte mensagem, a mando de Dona Dilma:
Transcrição da Mensagem do Chanceler Brasileiro
SG/1 /UCRA ETEC
Em 16 de julho de 2015
Senhor Embaixador,Faço referência ao Tratado sobre Cooperação de Longo Prazo na Utilização do Veículo de Lançamentos Cyclone-4 no Centro de Lançamento de Alcântara, assinado cm Brasília, em 21 de outubro de 2003.
A esse respeito, informo Vossa Excelência de que, após minucioso exame realizado em nível técnico, cujos elementos de informação e resultados foram objeto de análise e decisão no mais alto nível, o Governo brasileiro chegou à conclusão de que ocorreu significativa alteração da equação tecnológico-comercial que justificou o inicio da parceria decorrente do Tratado em questão.
Nessas condições, invocando o artigo 17, item 3, do referido Tratado, transmito a Vossa Excelência a decisão irrevogável do Governo brasileiro de denunciá-lo.
Aproveito a oportunidade para renovar a Vossa Excelência os protestos de minha mais alta estima e consideração.>
Mauro Vieira
Ministro de Estado das Relações ExterioresA Sua Excelência o Senhor Rostyslay Tronenko
Embaixador da Ucrânia
Simplesmente rasgaram o acordo. Tchau, satélite brasileiro.
E, para não deixar dúvida, ela ainda publicou em decreto que rasgou o acordo:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Decreto/D8494.htm
Todo o investimento posto fora. Milhões pagos. O veículo pronto, bonitinho, segundo as especificações, funcionando direitinho. E, o melhor, com a Ucrânia furiosa com a gente querendo cobrar nos órgãos internacionais mais de 2 bilhões de indenização que eles gastaram no investimento. E com PLENA razão.
Não que isso importe: no site do projeto, ainda está de pé a seção “for customers” já anunciando como contratar o serviço de lançamento de satélites. Quem ligar pedindo informações vai ter uma bela surpresa.
Na data de hoje, em junho de 2016, diz o site, congelado como uma triste lembrança:
“PROJECT STATUS
The current events in Ukraine have not impacted the Cyclone-4 Project development. Currently, the Launch Vehicle development is progressing as scheduled, and it will be ready for delivery to Alcantara in the second half of 2015. A significant portion of the Launch Site civil construction activities has been completed as well. Most of Ground Support Equipment has been contracted, and some has already been received in Alcantara.”
Eu acharia de bom tom adicionar aos nossos futuros clientes:
“OH, by the way, we forgot to say we ABANDONED THE WHOLE PROJECT ALTOGHETHER, but this site is pretty cool anyway so we’ll be leaving it online.”
A mensagem ainda em exposição tranquiliza, em junho de 2016:
“and it will be ready for delivery to Alcantara in the second half of 2015”.
É assim que nós brasileiros aparentemente queremos atingir as estrelas: começamos com milhões e milhões aprovados, por decretos não-numerados, se necessário, e terminamos com um site triste que nem sequer alguém se dá ao trabalho de atualizar.
Hi! I am a robot. I just upvoted you! I found similar content that readers might be interested in:
http://acidezmental.xpg.com.br/por_que_o_programa_espacial_brasileiro_e_um_fiasco_mundial.html
Texto roubado de mim e sem crédito. Checar o link do web archive.
Article stolen from me, and without credit. Check web archive link.
"Acidez Mental" é um site notório por roubar textos da Internet.
"Acidez Mental" is infamous for its article thefts.
@cheetah, the link you posted is a stolen article from @donin. I can confirm because I've seen Donin posting it as original content years ago.