Tráfico - O setor da economia que mais oferece oportunidades de primeiro emprego

in #pt6 years ago (edited)

Imagine você com 15 anos vivendo uma vida de pobreza numa periferia qualquer. Você se cansa dessa vida, faz um currículo (que não tem nada que interesse a empresa alguma) e entrega em 20 lugares. 2 te chamam para entrevista e nenhum te dá retorno. Os programas de aprendizagem são que nem lenda do unicórnio, todo mundo fala mas ninguém nunca viu. Você fica meses tentando um emprego. Até que consegue um bico no lava-jato, onde o trabalho é braçal e cansativo mas se você ficar até mais tarde pode ser que consiga um pouco mais de dinheiro. Você já nem gostava da escola mesmo, então você abandona os estudos e fica só trabalhando. Você quer uma bike mas nem você e nem sua mãe tem cartão de crédito, então você precisar trabalhar por meses para juntar o dinheiro e comprar à vista. Mas o lava-jato fecha. Você vive longos meses de desemprego, fazendo um ou outro bico. A energia da sua casa é cortada e sua mãe não sabe como vai pagar. Então você conhece o tráfico. E o tráfico não é um cara encapuzado segurando um fuzil. É um morador do bairro, um pouco mais velho que você, mas com uma roupa legal, um celular topzera, uma caranga tunada e uma corrente de ouro. Você facilmente se vê como ele num futuro próximo, afinal vocês são quase vizinhos, estudaram na mesma escola, são quase da mesma idade, ouvem os mesmos tipos de música, entre outras semelhanças que tornam o exemplo de vida desse cara muito mais viável de ser seguido, do que dos playboys dos bairros nobres. O esquema do tráfico é simples e funciona como uma consignação. Se a polícia te pegar você está isento de pagar a mercadoria detida, porém se você vender para alguém que não te pagar, você quem paga o prejuízo. Nunca dedurar. Nunca passar informação sobre lucros e fornecedores para outras "empresas" do mesmo ramo. Não prospectar clientes quando estiver dentro do território da concorrência. Toda profissão tem seu código de ética, e com esta não seria diferente. Horário flexível, esquema home office, serviços de tele-entrega... como um trainee da área comercial deste setor você tem muita autonomia. Fora a remuneração, que é muito maior que nas vagas formais. Em menos de 6 meses você compra a bike, um celular, renova o guarda roupa e compra um tanquinho para sua mãe. Você paga a dívida da conta de energia. Leva todo os seus irmãos para comer na praça de alimentação do shopping. Sua mãe sabe o que você está fazendo e se resigna, porque afinal você está pagando coisas que ela nunca conseguiu pagar, mesmo após uma vida inteira de labuta bruta. Você sonha com sua próxima meta, porque agora você é uma pessoa que tem metas na vida; agora você quer comprar um carro. Mas isso não é tudo, você olha pro seu chefe, aquela figura inspiradora, e pensa: uma dia eu vou ser empresário que nem ele. Vou ter minha própria biqueira.

Essa história foi só para ilustrar o que eu vejo e ouço todos os dias, mas hoje em especial fiquei mais pensativa sobre o assunto, pois visitei uma unidade da Fundação CASA onde a maioria dos internos estava ali por tráfico. Muitos deles reincidentes. E muitos deles vão reincidir na vida adulta, como temos visto acontecer tantas vezes.

Num país onde a economia formal não consegue absorver a oferta de trabalhadores, o tráfico se torna uma alternativa irresistível para milhares de jovens. No tráfico há lugar para todos: não tem idade mínima, não precisa experiência, não precisa de investimento inicial, capacitação, currículo, carteira de trabalho, exame admissional, etc. Basta querer. Chega a ser assustadora a facilidade de entrar nesse ramo.

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Esta imagem pode servir de metáfora para as duas categorias de mão de obra juvenil produzida pelos arranjos sociais do nosso país: os que puderam se qualificar e os que não puderam se qualificar. Obviamente o tráfico vai encontrar um maior numero de candidatos, mais fáceis de serem recrutados, e que estão mais dispostos a arriscar sua vida e liberdade, entre aqueles que foram excluídos da economia formal desde muito cedo. E que não têm muita opção além de servir droga aos que estão incluídos na economia formal.

E assim impomos a mais uma geração um giro no ciclo da pobreza, certos de que não há muito o que ser feito.
Que cruel isso.

Sort:  

É uma realidade que também me encontro com muita frequência. Última vez que ouvi, estava 500 reais por semana para avisar no rádio no tráfico. Dinheiro que paga muitas coisas, desde consumo básico, ajuda a família, substancias, e bens, como muitas pessoas. Enquanto não tem outro meio de renda que supra a demanda. Por vezes é o único caminho, e por vezes é um lugar de status. De toda maneira, é uma cultura criada onde o Estado não chega, por ineficiência, e desumanidade. Os representantes públicos não estão nem ai para população, e a classe trabalhadora, tem dificuldade de entender seu próprio contexto social, tempos difíceis. Quem sabe a tecnologia pode ajudar a amenizar esse abismo.

Sim Matheus, concordo com tudo que você disse. Sobre a tecnologia, eu me pergunto muito sobre isso, sobre como usar essa ferramenta tão poderosa nesse cenário cruel. Vi que existem criptomoedas como a Indicoin e a Social Coin, que tem essa proposta mais voltada ao social mas não entendi muito bem como funcionam.

Penso em diferentes direções e temporalidades, que talvez fiquem aquém da resposta aqui, eventualmente posso tentar elaborar um post. Inicialmente só por explanar essa realidade aqui já acredito que tenha impacto, para outros poderem entender esses contextos, seja agora ou futuramente.

Em termos de protocolos blockchain, acredito que a tokenizacao do universo online pode ser um caminho de acesso para muitos, tando ao conhecimento e educação, quanto a renda. Ainda estamos em uma fase bem inicial, ainda tem muito por vir. Um protocolo nesse caminho que gosto é o mannabase, ainda em construção, com um ótimo potencial.

Além da integração que o espaço virtual promove de ideias, e ideais, onde em um espaço real é diferente, em termos de ideias.

É um momento difícil, onde os extremos dos ideais, permeiam em um espaço em que o Estado não chega. Tanto no coletivo, quanto no individual. E de alguma forma aqui no Steemit, no protocolo do Steem que se forma, o dialogo se faz de uma forma mais horizontal do que outras redes, e menos truncado. Isso oferece uma chance de integrar e discutir ideias parecidas e diferentes, trazendo o dialogo e construcao de conhecimento a outro patamar, ainda temos um longo percurso, e é preciso mostrar que o mundo real existe, e amenizar a distancia de quem esta acostumado com o mundo pela tela, do mundo das relações humanas existentes em seu contexto real. E a aplicação social se dará a medida das pessoas entenderem como será, e como conseguir monetizar dados, seja produzindo ou recebendo. De acordo com IBGE no Brasil mais de 160 milhões de pessoas tem acesso a internet, comunidades virtuais se formam, e não podemos deixar que ela se forme sem entender o contexto social que vivemos.

Oi Matheus, muito legal seu ponto de vista. Eu gostaria muito que você fizesse um post sobre tudo isso que você expôs, quando possível. Eu acredito muito que esse seja o caminho mas confesso que não entendo muito de protocolos, tokens, blockchain. Eu tenho muita experiência com o contexto social real, mas como você disse o Estado não chega nas pontas do sistema, que é onde estão os que mais precisam. E é por isso que eu estou aqui, para amenizar minha ignorância sobre as possibilidades que toda essa tecnologia nos oferece. Agradeço a explanação. Me motivou a aprender mais : )

Boa, @aliny! Ótimo texto e crítica, o tráfico só cresce pela incompetência do estado, que o promove com a sua política de proibição. É preciso uma gestão eficiente do problema, assim como já foi feito com o cigarro, por exemplo. Mas para isso a sociedade precisa amadurecer também, é um problema de todos. Obrigado por compartilhar ;)

Obrigada por postar sua opinião @casagrande! Concordo com suas colocações, temos um longo caminho pela frente.

Parabéns, seu post foi selecionado pelo projeto Brazilian Power, cuja meta é incentivar a criação de mais conteúdo de qualidade, conectando a comunidade brasileira e melhorando as recompensas no Steemit. Obrigado!

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Eu discordo. Há o que possa ser feito. Mas não por esses jovens que não tem acesso ao conhecimento necessário, e sim por pessoas como nós, que conseguem tirar um trocado do mercado internacional e inseri-los a nosso serviço.

Tenho um projeto experimental já corrente neste estilo e espero poder fazer mais em breve.

Oi Felipe, eu também discordo que não possamos fazer nada. Foi só uma ironia, porque a maioria das pessoas prefere fingir que está tudo bem. Fico muito feliz que existam pessoas tentando ajudar a resolver esse tipo de problema, e desejo sucesso ao seu projeto. Tenho experiência com inserção de adolescentes no mercado de trabalho, se eu puder ajudar em algo fico à disposição para conversar sobre.