Seres humanos podem ter saído da África 400 mil anos antes do que se pensava
Pesquisadores de universidades brasileiras dataram artefatos de pedra lascada em 2,5 milhões de anos; peças teriam sido feitas pelo Homo habilis
Visão geral do Vale do rio Zarqa, onde estão os sítios estudados na Jordânia (Foto de Giancarlo Scardia / Unesp)
Um grupo de arqueólogos e geólogos de universidades brasileiras afirma ter descoberto os mais antigos indícios da saída de hominídeos da África. As camadas geológicas em que foram encontrados seixos lascados e lascas, oriundos de escavações feitas entre 2013 e 2016 no vale do rio Zarqa, na Jordânia, foram datadas por três métodos distintos e atingiram a idade máxima de aproximadamente 2,5 milhões anos. Se os dados estiverem corretos, esses artefatos teriam sido produzidos pelas mãos de indivíduos pertencentes a populações de Homo habilis, a primeira espécie conhecida do gênero Homo, 400 mil anos antes do registro considerado até agora como o mais antigo da presença de hominídeos fora do continente africado. No ano passado, foram encontradas na China peças de indústria lítica, como os arqueólogos denominam os artefatos de pedra trabalhados por mãos humanas, às quais foram atribuídas a idade de 2,1 milhões de anos. Os novos achados no Oriente Médio, que devem provocar alguma polêmica assim que se tornarem públicos, serão publicados no dia 9 de julho no site do periódico científico Quaternary Science Reviews.
“Nosso estudo muda a história da humanidade em quase meio milhão de anos”, afirma o bioarqueólogo Walter Neves, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), coordenador da equipe que fez as pesquisas na Jordânia e escreveu o artigo científico. Também altera qual teria sido a primeira espécie de hominídeo a deixar a África, berço da humanidade. Antes das recentes descobertas de indústria lítica com mais de 2 milhões de anos na China e agora na Jordânia, o sítio de Dmanisi, na República da Geórgia, na região do Cáucaso, exibia artefatos de pedra e cinco crânios de hominídeos da espécie Homo erectus datados em cerca de 1,8 milhão de anos. Mas há 2,5 milhões, idade dos sítios no vale do rio Zarqa, existia apenas uma espécie de hominídeo que trabalhava a pedra lascada, o Homo habilis. Por isso, Neves e seus colegas atribuem os artefatos da Jordânia a essa espécie.
No vale do rio Zarqa não foram identificados fósseis de ossadas de hominídeos nas escavações, apenas vestígios de uma espécie de mamute, do bovídeo auroque, de um cavalo e de mastodonte. “É muito raro encontrar esqueletos humanos em sítios paleolíticos”, comenta o arqueólogo italiano Fabio Parenti, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), outro membro da equipe e coautor do trabalho. “Quando não temos ossos, falamos das pedras [lascadas pelo homem].” Segundo os pesquisadores, os artefatos de pedras de Zarqa apresentam características inequívocas de terem sido feitas por mãos humanas e não de forma natural, debate que sempre surge quando são achadas novas evidências arqueológicas com potencial de “reescrever” a pré-história.
Suas lascas e seixos seriam característicos da chamada indústria lítica Olduvaiense, muito primitiva, registrada na África há pelo menos 2,4 milhões de anos. Trata-se basicamente de seixos a partir dos quais são produzidas lascas. O que diferencia as peças dessa indústria são seu formato mais próximo do triangular (os seixos de origem natural são mais arredondados), com talhos em ângulos menores que 80 graus. “Os hominídeos não caçavam nessa época. Essas lascas deviam ser usadas para descascar carniça”, comenta Neves. Cerca de 2 mil artefatos de pedra lascada foram encontrados em sítios do vale do Zarqa. “Encontramos em um barranco de 120 metros que escavamos uma concentração anormal de artefatos de pedra”, diz o arqueólogo Astolfo Araujo, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, outro membro da equipe.
Os sítios da Jordânia são pouco conhecidos. Embora tenham sido escavados por franceses e italianos entre 30 e 40 anos atrás (Fabio Parenti escavou a área no final dos anos 1990), são alvo de poucas publicações científicas. A equipe de Neves resolveu explorar na região porque a Jordânia faz parte do Oriente Médio, que seria um corredor de passagem natural para os hominídeos de saída da África a caminho da Ásia. No entanto, quase não há registros antigos da presença de hominídeos no Oriente Médio. “Ficamos muito surpresos quando nossas datações deram 2,5 milhões anos para as camadas geológicas mais antigas com artefatos líticos”, admite o geólogo italiano Giarcarlo Scardia, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro, especialista em paleomagnetismo e primeiro autor do estudo. “Mas acho que não há como questionar nossas datações.”
Lascas de pedras encontradas no vale do rio Zarqa feitas por hominídeos (Foto de Giancarlo Scardia / Unesp)
Os três métodos usados para determinar a idade da formação Dawqara (camada geológica) em que estavam os artefatos de pedra foram a datação por isótopos de elemento argônio, o decaimento do urânio para o chumbo e o paleomagnetismo. Os resultados das análises indicaram que a região deve ter sido habitada por hominídeos por um período contínuo de 500 mil anos, entre 2,5 e 2 milhões de anos atrás.
Escavação em paredão do Vale do rio Zarqa (Foto de Giancarlo Scardia / Unesp)
Além de Parenti, Neves, Araujo e Scardia, também assinam o artigo com descobertas na Jordânia os pesquisadores Daniel P. Miggins, da Universidade do Estado do Oregon, nos Estados Unidos, e Axel Gerdes, da Universidade Goethe, da Alemanha. Cerca de 80% dos trabalhos da equipe foram financiados por projetos da FAPESP e o restante pela Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research, de Nova York.
Referências bibliográficas
SCARDIA. G. et al. Chronologic constraints on hominin dispersal outside Africa since 2.48Ma from the Zarqa Valley, Jordan. Quaternary Science Reviews. v. 219, p. 1-19. set. 2019
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