Vingança & Castigo é um faroeste que merece a tela do cinema
Apesar de não ser o gênero que eu mais acompanhei ou até o que eu mais gosto, eu conheci o faroeste desde muito cedo, graças ao meu avô, que era apaixonado pelo bangue-bangue, como ele chamava.
Por isso, quando assisti pela primeira vez filmes como Meu ódio será Tua herança ou Os Imperdoáveis, não tinha ideia de que eles faziam parte de um outro “tipo” de faroeste, conhecido como western revisionista. Era novo demais para assemelhar o padrão que esse subgênero propunha. Num resumo muito curto, o revisionismo altera algumas das características mais comuns do gênero: dentre elas, a imagem negativa dos nativos americanos, negros, mulheres, ou qualquer outra raça e gênero que não fosse padrão-homem-branco-heróico-de-moral-incorruptível.
Talvez o exemplo mais recente e conhecido de um faroeste revisionista seja Django Livre, do adorado Quentin Tarantino, num western spaghetti cujo herói é o homem negro e o vilão, o branco.
Aliás, a pegada mais cinematográfica do que realista é um dos aspectos que eu mais gosto de Django Livre (que é também uma das características mais reconhecíveis de Tarantino). Dentre outras coisas, as construções dos personagens feitas pela câmera, com seus ângulos baixos, closes e outras movimentações enfáticas e dinâmicas – bem aquilo que poderia se chamar de tarantinesca – se inspiram nas convenções clássicas do gênero, mas ganham um novo valor a partir do revisionismo.
Afinal, durante muitos anos, os nativos americanos, por exemplo, foram retratados no faroeste não apenas como bandidos selvagens, mas como intrusos na sua própria terra. Ou seja, a perspectiva era a do colonizador. E tendo em vista que no cinema a identificação primária é com a câmera, dá pra imaginar a forma de lidar com os “vilões” não seria a mesma dos “heróis”. Não se trata apenas de diminuir um personagem fictício através da linguagem do cinema (com plongees, zoons, travellings e etc), mas ampliar e fortalecer o preconceito social real.
Pra mim, isso significa que Django Livre, que eu passei a gostar bem mais ao longo do tempo, não é apenas divertido, mas necessário. Só que, ainda assim, temos um filme sobre um personagem negro escrito e dirigido por um homem branco. Não à toa, há um inegável protagonismo branco na história, para o bem ou para o mau, que a faz caminhar.
Bem, dito tudo isso, talvez basta dizer que Vingança & Castigo o protagonismo é todo negro. Mas é claro que não vou dizer só isso.
A história do filme segue o tradicional padrão de vingança: o fora-da-lei Nat Love caçou e matou cada membro da gangue de Rufus Buck, a responsável por uma tragédia do seu passado. Menos o próprio e impiedoso Rufus, que está preso em Yuma. Mas quando Nat descobre que o Buck sairá da cadeia, ele reúne seu bando e parte para completar sua vingança.
Dirigido por Jeymes Samuel, que também assina o roteiro ao lado de Boaz Yakin, Vingança & Castigo é um westent revisionista que deixa seu propósito bem claro logo no início ao anunciar que “embora os eventos deste filme sejam ficcionais... Essas. Pessoas. Existiram”.
Cada personagem relevante na trama realmente existiu. Alguns deles, inclusive, serviram de inspiração para personagens brancos e clássicos do gênero, como o Cavaleiro Solitário. Homens e mulheres negras que quase foram esquecidos e são, boa parte das vezes, ignorados no faroeste, um gênero de importância cultural é inegável nos EUA.
Vingança & Castigo reverte isso. Há uma dose bem clara de importância com os personagens, que vai além da mecânica narrativa. O próprio elenco ajuda a evidenciar isso. A escalação é primorosa pela variedade de nomes famosos, principalmente, como Jonathan Majors, Zazie Beetz, Regina King, LaKeith Stanfield, Delroy Lindo e Idris Elba, dentre vários outros.
O talento do elenco é uma das forças principais do filme. Cada personagem é interessante do seu próprio jeito. Regina King, por exemplo, está numa intensidade assustadora, tal como Idris Elba. Ambos porem intimidam de formas bem diferentes.
LaKeith Sanfield faz um personagem de aspecto ambíguo e instigante. Ou mesmo Jonathan Majors com um Nat Love “simples”, mas não menos intenso e relacionável. E já que estou falando de talento, a Cuffee de Danielle Deadwyler se destaca no meio de tantos nomes de peso, com uma linguagem corporal que diz muito sobre a personagem de poucas palavras.
A miscelânea de personagens diferentes cria um microcosmo negro, que se mantém coeso pela realidade e passado deles, marcado por alguma forma de violência: as consequências da escravidão, sejam elas diretas ou indiretas.
A escravidão, ou melhor, o racismo, é uma relação de poder. E Castigo e Vingança busca reorganizar essa relação de poder. Para isso, além dos personagens, há todo o estilo da obra, que vai além do valor apenas estético.
As convenções do gênero estão todas ali, das paisagens aos tiros, mas customizados pelo estilo de Samuel. Trata-se de um filme superestilizado, recheado de saturação, paletas de cores contrastantes, músicas anacrônicas, personagens de fala urbana, frames congelados e o perceptível sangue digitalizado (que foi uma das poucas coisas que me incomodaram). Embora tudo isso se combine numa jornada bonita e dinâmica, é mais interessante reparar como esses aspectos da forma redefinem a relação de poder dentro do filme. Principalmente quando aparecem os poucos personagens brancos da história.
A primeira é como eles não possuem influência direta na história. Ou seja, não são eles quem a movimentam. E quando são “necessários”, o filme lida com isso de forma bastante irônica, tal como na sequência da cidade branca. Apesar de uma pequena redundância do letreiro, que repete justamente o que está em cena (quase como a explicação de uma piada óbvia), a tônica é cômica. Não só pelo uso da cor, mas também pela facilidade com que tudo se desenrola.
Mais interessante do que ela, é uma sequência anterior: do assalto ao trem, que também é a revelação do vilão. A estilização, nessa sequência, tem valor narrativo. A primeira é a deformação do ambiente pela presença do vilão, que sai de um escuro profundo – o que é uma metáfora visual bem explícita sobre quem é Rufus essencialmente, apesar de toda nuance emocional muito bem composta por Elba.
Porém o mais interessante é um momento anteior à revelação. negociação cuja montagem divide a tela. A opção busca justamente demonstrar qual é a relação de poder racial dentro da obra. E fica claro que quem detém o poder são os protagonistas negros.
Ao dividir a tela, Jeymes deixa em evidência os dois lados da negociação, mantendo o semblante calmo, controlado e estranho de Cherokee Bill em contraposição ao soldado branco nervoso. Dessa forma, não há duvidas sobre quem está no controle da situação. Não há espaço para qualquer sugestão possível oriunda das elipses da montagem.
Tudo isso fortalece o aspecto cinematográfico do filme enquanto forma narrativa. Não é um filme que busca o realismo cru tão comum do gênero, mas o espetáculo dele. Mas não é tudo apenas espetáculo, principalmente quanto ao clímax que, apesar da ação frenética e violência com doses de blackexplitaion, tem seu ápice no emocional. As revelações finais, que unem as pontas restantes da história, são quase como tiros nos personagens. Um ótimo misto de tiro, porrada, bomba e emoção...
Vingança & Castigo é um blockbuster - ou seria melhor blackbuster? – que deveria passar nos cinemas. Um faroeste moderno, intenso e divertido, cheio de ação e estilo. Das imagens às músicas, é difícil ficar impassível! Mesmo que você não queria focar no aspecto racial, o filme é, no mínimo, um ótimo exemplo de faroeste revisionista.
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